Algumas pessoas sabem o que cantam. Outras fazem exibições malabarísticas dos seus
dotes vocais. Então poderiam cantar quaisquer frases dentro de uma melodia que o resultado
seria o mesmo. Não estou falando, evidentemente, do que anda vendendo por aí, estou
falando de música. Salvo duas ou três estações de rádio, não é mais possível percorrer as FM.
O lixo se alojou nelas e, claro, na cabeça dos seus patrocinadores.
Certa vez, me ocorreu que o preço de um CD gravado por um desses “cantores” deve
ter um custo mais barato. Imaginei o seguinte: entra-se num estúdio, com bateria, piano
elétrico, guitarra e alguma coisa que faz tom tom lá atrás, que é o contrabaixo, pra ser tocada
uma melodia absolutamente primária. Lógico que isso se faz em uma hora. Aí, sim, caberia na
minha cabeça o porquê de se gravar tanto lixo. Estaria justificado. Gravadoras e produtores
economizariam muito. Conversando com o Theo de Barros, comentei isso com ele. O Theo é
uma pessoa que passou a vida dentro de um estúdio, e conhece bem esses dados. Sua
resposta foi: “…eu entro em um estúdio com uma orquestra para gravar, e o cara do estúdio
ao lado, que vai gravar isso aí, passa horas afinando a bateria. No final ele fica mais tempo no
estúdio do que eu”. Eu ia continuar a conversa, mas deixei de lado o assunto. Tragédia é
tragédia, não se pode fazer nada a esse respeito.
O Brasil teve, e tem, grandes cantores/as e grandes (poucos) intérpretes. Márcia, para
quem se lembra, é uma delas: intérprete e cantora. Márcia canta com todos os erres e esses
no lugar certo, e quando ela diz que ronda a cidade, ela ronda mesmo. Você vai junto, pela
avenida São João, às três da madrugada. Maria Bethânia é outra brilhante intérprete. Ela
consegue colocar emoção na voz até quando faz uma pausa e parece que a voz se calou para a
pausa, mas não é verdade, a voz ainda está no ar. A emissão ainda ficou na nossa pele e nos
nossos nervos. Poderia se dizer que Bethânia começou no teatro, daí a sua maneira de
interpretar ter essa influência: a da dramaticidade do teatro. Mas não é assim que funciona.
Marília Medalha foi atriz antes de ser cantora.
Não existe exatamente algo que delimite quais as fronteiras da arte que podem ser
ultrapassadas. Mas elas podem. Borodin era um médico, já de renome internacional, e um
estudioso de química, quando escreveu O Príncipe Igor e, diga-se de passagem, dedicava-se à
música apenas nos finais de semana. Levou 18 anos compondo essa ópera que, com a sua
morte, ficou inacabada, sendo depois terminada por Rimsky-Korsakov. Uma parte do Príncipe
Igor ganhou imensa popularidade depois, e provavelmente Borodin jamais imaginou isso. O
que eu quero dizer, é que mesmo aquilo que parece ser destinado à uma elite, não é. Porque é
bom separar elite cultural de elite social. E a elite cultural está, cada vez mais, diminuída.
Interpretar uma canção é criar uma canção. Não é repetir vocalmente um amontoado
de notas. Não, cantar não é recriar uma composição, mas sim criar uma forma de condução
dessa canção. Por isso eu dei o exemplo de Borodin, cujo destino do Príncipe Igor, que ele
jamais viu encenada, escapou-lhe.
Todas essas coisas: arte, vida, etc, que às vezes pensamos compartimentadas, e que às
vezes estão mesmo, não obedecem às regras simples que pretendemos, com a imprescindível
ajuda do domínio da linguagem, impor-lhes.
Se o Brasil teve, e tem, cantoras que se esmeram em interpretar o que cantam, não
tem o equivalente em vozes masculinas. Temos grandes cantores, e poucos intérpretes. Um
deles é Cauby.
E nessa lacuna apareceu, numa noite diáfana de abril, — porque o adjetivo diáfana me
parece apropriado para designar as noites de abril — o Fábio. Mais precisamente: Fábio Jorge.
Foi um único show no Teatro Crowne Plaza, anteriormente apresentado em um dos
teatros da Praça Roosevelt, numa terça-feira. Chamou minha atenção o título: Sob o Céu de
Paris. Porque alguém cantaria em francês e, sobretudo, manteria um repertório de canções
francesas, não tão conhecidas atualmente? — Primeiro porque eu sou filho de franceses, e
ficava com meu avô, ouvindo os discos que ele ouvia na hora do almoço, ele me disse depois
do show, que eu tive o cuidado de fotografar. E o motivo número dois se perdeu no ar, porque
não tem importância a razão pela qual as pessoas fazem as coisas, uma vez que estão sendo
bem feitas. Além disso há músicas brasileiras no show, cantadas em francês. Uma delas, A
noite do meu bem, composição de Dolores Duran, foi gravada em francês, pela Elis Regina.
Não sei se ele gravará um CD que vai vender, ou tocar no rádio, se ele irá para Paris
cantar, ou se vai apenas continuar com seu seleto público. Isso nem é relevante. Borodin não
sabia que O Príncipe Igor se tornaria Stranger in Paradise.
Por isso, não vou escrever uma crônica inteira falando sobre a voz desse homem que
interpreta como poucos. Eu teria de ficar indefinidamente elogiando a maneira como ele sente
todas as sílabas que canta, e elogios são eternas repetições da mesma coisa. Basta dizer aqui
que seu nome é Fábio Jorge, que ele nasceu brilhando, mas com um brilho diferente do que
aquele que o seu tempo conhece, e isso o faz incomum. Então basta frisar que ele sabe que
um palco é um lugar onde se sobe para se deixar alguma coisa a mais do que uma canção. Que
tem de ser impresso, em nós, expectadores, uma parte da sua alma, da sua teatralidade, que
ficará cantando dentro de nós, quando nos movimentarmos pela rua, quando tomarmos um
café quente pela manhã, quando a cidade rugir e suas metralhadoras dispararem, quando os
temíveis amores se despedaçarem nas nossas madrugadas: e aí será nela, na canção, que nós
vamos buscar um pouco do nosso sonho.